Carta ao Pe. João Cabral
Meu querido amigo, Padre Cabral, Irmão João
Que ideia, que ideia, eu ficar zangado! Zangado porquê?! Então o Pe. Cabral pensa que lá por ser poeta, ou melhor, pelo facto de ser poeta me iria susceptibilizar com opiniões, ainda mais quando estas são mais precisamente de ordem afectiva. Não, nunca. Fique de uma vez sabendo, e eu já várias vezes o tenho manifestado, que não há coisa que mais me aborreça que a preguiça sentimental. Por dar imenso valor ao sentimento não o posso querer desvirtuado. Há uma coisa que é de ordem inteligente, uma ternura inteligente, uma sensibilidade inteligente, que eu muito prezo, acima de todos, nos meus amigos. Mas ficar zangado pelo facto de o Pe. Cabral não se ter adaptado, melhor, não ter tido aptidão para o meu livro, já lhe disse — isso nunca. O que posso fazer é conversar consigo, explicar-lhe um certo número de assuntos. Aliás, quando lhe ofereci o livro já sabia que o Pe. Cabral o não poderia apreciar como obra em si, isolada do autor. Mandei-lho, porque ele me pertence, porque até agora este livro representa a única prova material, objectiva, da graça que Deus me deu. Sim, porque se eu me sinto penalizado para comigo de não ter servido a Nosso Senhor, melhor, para benefício dos outros. Mandei-lho como quem se confessa. Porque sei que os meus pecados são uma miséria perante a misericórdia de Deus em si, Pe. Cabral! Porque eu também o conheço, Pe. Cabral. E conhecendo-o, amo-o, não importa as divergências que possa haver entre nós. Cada vez mais me afirmo na verdade de que só as almas interessam. E onde está um homem está uma alma. É um erro, e esse erro já se faz sentir nas consequências, suporem-me capaz de me ligar a este ou àquele emblema pela razão de maior afinidade. Quando digo emblema, digo homens, ideias, coisas. Não tenho eu ido para junto dos Jesuítas quando tudo em mim me chama para os Beneditinos ou para os Franciscanos? Não me misturo eu aos comunistas e ainda mais a muitos rapazes orgulhosos no pecado ou humildes no pecado [?]. Ah! e eu teria muito maior paz junto àqueles que aceitam a minha verdade que é a de Jesus Cristo através da sua Santa Igreja! Maior paz, mas não melhor. É que junto desses transviados eu sinto quanto é grande a minha miséria, são eles que trazem luz à minha consciência adormecida num bem-estar que é transitório. Ora veja como o Pe. Cabral serviu de objecto para uma meditação. E que me fez lembrar o tempo passado e o que é presente, em que eu me intimido por razões secundárias, me calo, temendo o escândalo da Verdade. Mas o Pe. Cabral conhece-me e isso é que é grave. Grave para mim, pois não lhe mereci ainda inteira confiança, porque se embaraçou demorando-se em responder-me, hesitando dias seguidos no que havia de me dizer. Grave para mim, pois supondo-me isento de respeito humano sou acusado indirectamente por aqueles que melhor me conhecem. Uma vez mais o que eu penso não corresponde à realidade. Vamos pedir a Deus para que isso aconteça.
Quanto à poesia (mas o Pe. Cabral não me falou da introdução em prosa). Se por razões de ordem intelectual e estética não pôde comunicar com a minha poesia, porque não me falou da prosa, esquecendo a poesia? É este um princípio de crítica que anda muito esquecido: falar apenas do que podemos entender de alma e coração: falar com amor; isto é, criticar quando estamos em perfeita identidade com o objecto. É verdade que haveria muito menos crítica se esquecermos o tempo que é sempre o melhor crítico.
Se dou muito valor à poesia é que ela é para os poetas chamados de modernistas (o modernismo já tem bem uns cinquenta anos!) uma porta de salvação. Tem um carácter sacro, é a vida mais sobreelevada, mais íntima, mais religiosa de muita gente mesmo que não se exprima em poesia.
Por isso a poesia moderna só pode ser apreendida com espírito de oração. É preciso esperar: é necessário que se façam trevas para que a luz se revele. Ela é luz e não claridade. Por isso a poesia moderna tem um carácter verdadeiramente religioso, cristão, mesmo quando parece estar em antagonismo com a religião cristã. Ela é luz e não claridade. Como nos primeiros tempos do cristianismo ela priva-se da claridade greco-latina para melhor receber a luz divina. Este carácter de humildade salva a poesia moderna de muitos excessos. Por isso estando na linha de continuidade da verdadeira poesia de todos os tempos, ela não é um objecto de prazer para os sentidos, de deleite para certos momentos: é a vida com toda a sua estranheza, encanto, contradição. Falo evidente¬mente da verdadeira poesia moderna. Lembro-me desse santo laico que é o José Régio.
Repare neste pedaço de uma poesia do Régio transcrita pelo P.° João Mendes no seu livrinho sobre os «três verbos da vida». Quantos não acharão abstruso, apoético (no sentido dos Correias de Oliveiras e muitos outros arranjadores de raminhos floridos do século XIX e ainda neste) e, no en¬tanto como é uma poesia que os católicos bem formados percebem, porque é uma poesia que se ele¬vou na compreensão de uma verdade que nós aprendemos de cor, muitas vezes sem nela meditar.
EXAME DE CONSCIÊNCIA
Sabe (se é que o não sabes)
Que ao teu amor por mim foi que ganhei amor,
Que a ti... sei se te amo.
Sei que me deixam sozinho
Ante o girar dos mundos e dos séculos!
Sei que um deserto é o meu caminho;
Sei que o silêncio
Me há-de sepultar em vida;
Sei que o pavor, a noite, o frio,
Serão jardim da minha ermida;
Sei que tenho dó de mim...
Fica tu sabendo assim,
Querida!
Porque te chamo.
Mas amar-te?!
Não! reduziram-me a isto:
Só a mim amo.
Parece-me que isto é muito mais religioso porque corresponde a uma realidade vital, a uma angús¬tia verdadeiramente metafísica transposta para um caso particular, do que todos os poemas de muitos poemas que falam de Nosso Senhor com Ele a mil infinitos de distância, sem O compreenderem, sem entrarem no conhecimento de si próprios e aí encontrarem o latejar do nosso Eu verdadeiro: Deus.
Ou então,
Poderás amar-me assim, (Como explicar-me?) Por qualquer Cousa que eu for Mas não por mim, não a mim...
também de José Régio e em que ele procura a Deus no amor. Vale mais do que todos
Amo-te ó Cruz nos vértices firmada
De rútilas Igrejas etc.
Tárá tá tim — Tara tá tim, Tara tá tim.
em que a Cruz não se encontra bem dentro de nós como objecto de Amor, mas fora de nós, apenas como objecto de admiração de curiosidade, alheia a nós, mesmo quando em pensamento a deseja¬mos em nós.
Já reparou que as igrejas portuguesas são mais uma feira dos nossos pecados do que a casa on¬de se dá glória Deus! O mau gosto é um insulto a Deus, as florinhas de papel de todas as cores são insulto a Deus. A sua fealdade, a sua fraqueza, dureza de coração, tibieza de fé, nenhum paladar para o sobrenatural, reinado de convenções, podridão, farisaísmo etc., etc. E no entanto, e isto é para comover, continuam as velhotas a ir à Missa, cheias de piedade, muito absurdas, que nos fazem sorrir quando deveriam fazer chorar de arrependimento. Isto também sucede com a poe¬sia. Foi a superabundância de pobreza de alma e de ingratidão que motivou o movimento modernista que, antes de cantar e de louvar procurou investigar as causas do mal anterior, em si próprios; como cegos caminharam, como as velhotas mantiveram-se fiéis à sua mais sagrada verdade, como homens inteligentes fizeram o seu exame de consciência. O tempo já se iniciou em que descober-tas as fontes de água pura, os poetas cantam com a certeza.
Desculpe Pe. Cabral este testamento. Creia que por Bem. Agora escreva-me e não demore mui¬to. Ajude-me a caminhar, pois cada palavra que me disser é um passo a mais que eu dou e que Deus há-de abençoar. «Sed tantum dic Verbo.»
Falar-lhe-ei da rapaziada na próxima carta. Mas antes responda a esta.
Seu muito amigo Ruy